O que eu faço com tudo isso que sei?

Lembro-me exato bem ao terminar a graduação em Letras. Olhei para os lados – a única a concluir bacharelado de uma turma toda de licenciandas e licenciandos, futuras professoras e professores – e a pergunta era O que eu faço com tudo isso que sei?

Eram muitas informações rodando a cabeça: semióticas, linguísticas, latins, roma antiga, gramáticas, novas ortografias, etc, e distintas literaturas (esta o principal motivo de eu ter iniciado tal curso: literatura. A ideia de que poderia conhecer mais e mais autores – e aqui mantenho o pronome somente no masculino mesmo porque era assim que eu conduzia minhas falas e escritas até então – me fascinava).

Ler foi a descoberta que me acompanhou desde a adolescência. Não sei dizer ao certo o porquê de eu começar a frequentar a biblioteca do bairro em que cresci, Penha, mas me lembro exato de um cartaz enorme citando a revista Época e com o título Os romances que ninguém deve morrer sem ler, e lá listado cinquenta e cinco títulos da literatura mundial. Devo ter achado aquilo muito importante e não sei se a sentença “morrer sem ler” me impactou de tal modo que comecei a listar todos os títulos em um caderno com a ideia de ir ticando cada um da lista após ter lido.

Hoje, pesquisando na internet, descobri ser esta matéria de março de 2001, ou seja, tinha eu dezesseis anos. Acontece que aqueles foram os enredos, aquelas foram as ideias que me formaram a partir deste primeiro contato. Construiu bastante de meu pensar adolescente e ingressei adultamente formada pelas histórias das páginas importantes da literatura mundial.

Faulkner encheu-me de fúria agonizante, Henry James me colocou em parafusos, Balzac me apresentou amores burgueses, Stendhal manchou de rubro-negro a nobreza até então me apresentada como topo devocional, Machado de Assis cortou lógicas simétricas de minhas memórias primeira pessoa, James Joyce me fez acreditar num dia único de muitas possibilidades, Flaubert me apresentou o que era um romance do realismo, Dostoiévski atravessou possesso castigando todo meu ser que se deslumbrou ao encontrar a edição papel bíblia da Nova Aguilar completa na prateleira da biblioteca – quantas noites entregue aos nomes russos e suas divagações filosóficas…, Conrad em trevas me mostrou metaliteratura, Tolstói cortou dogmas cristãos intrinsecamente arraigados no peito, Kafka processou todo um mundo além de uma vida controlável, Proust me mostrou um tempo aristocrático que eu nunca viria a conhecer pessoalmente, Guimarães Rosa ampliou as possibilidades de uso e desconstrução das palavras, García Marquez fez correr um fio de sangue solitário nos meus pés latinoamericanos, Camus empesteou-me absurdamente, Gide mostrou um lado além do santíssimo Vaticano e Woolf abriu-me para questões de biologias homem/mulher.

Eram estes alguns dos autores e livros da lista canônica de cinquenta e cinco títulos. O que acontece é que foram estas ideias europeias embutidas em minha formação, ideias de um colonialismo branco, uma perspectiva de classe que não a minha, um inebriamento de uma vida vivida que não condizia em nada com minha realidade. E, ainda, um monte de homem, à exceção de Virgínia Woolf (lida), Jane Austen e Emily Brontë (nunca lidas) formando minha existência.

Na faculdade de Letras não foi muito diferente. Eram quatro os estudos literários: Brasileira, Portuguesa, Inglesa (com um pouco da norte-americana) e Africana de Língua Portuguesa. Destas, novamente os chamados “grandes autores” e o estudo cronológico dos movimentos literários. Aqui uma certa aproximação linguística e geográfica, no entanto ainda dentro dos “elegidos”, dos “escolhidos” pela crítica para figurarem a historiografia literária nacional.

Crescer construindo um pensamento crítico em relação aos movimentos do mundo e buscando perifericamente os encontros e espaços de militância e desconstrução dos padrões foi abrir-me para um mundo que nem sabia existir e que foi simplesmente apartado da literatura apresentada desde o colégio, invisibilizado nas escolhas de “o que” mostrar, ensinar, noticiar, historicizar.

Pesquisar, ler e estudar a literatura não canônica (aqui o conceito de cânone literário está sim influenciado por Bloom) é sim novamente escrever com dureza a contrapelo a história (Benjamin). Hoje, cada vez que descubro uma nova autora que não consta em minha lista Revista Época, é com olhos cheios e atenção sedenta que vou ao encontro de suas palavras. E com esta mesma gana é que escrevo com mais liberdade meus poemas e rabiscos, por acreditar fazer uso das palavras como contrapelo à hegemonia e não assombrada pelo fantasma da qualidade literária que me estancava e me fazia descrer do que escrevia.

Contínuo exercício de esvaziar o copo cheio de colonialismos literários para abrir espaço para enchê-lo com novas descobertas, reaprender a ler para além das habilidades de escrita e inovações linguísticas. Contudo, fato é que até hoje tenho a lista d’Os romances que ninguém deve morrer sem ler num caderno amarelado pelo tempo que me acompanha ainda na esperança de ticar todos os títulos. Só que agora com olhar mais envergado para as obras – sem, no entanto, causar-me torcicolos – bem como com a lista ampliada em nova caligrafia.

Agora, Conceição Evaristo, Toni Morrison, Maya Angelou, Pauline Chiziane, bell hooks, Carolina Maria de Jesus, Solano Trindade, Ana Maria Gonçalves, Audre Lorde complementam a lista, dentre muitas e muitos outra/os. E se mais nomes me faltam, é porque mais de vinte e seis anos de formação não são bem equalizados de um ano para outro. A des/construção é contínua e recompõe meus membros aleijados pela deformação cultural europeia massificante.

E se Augusto Boal nos diz que já estamos vivendo a 3ª Guerra Mundial e que esta é a guerra dos sentidos, fiquemos, pois, com olhos atentos para todo terreno que é campo de luta simbólica a todo instante. E cada coisinha é arma carregada para encher mentes ideologicamente. Assim, não desqualifico o quanto que sei aprendido desta literatura mundial, mas agora posso abrir as veredas e involucrá-las com outros escritos. Para além do suporte literatura, formas e conteúdos de poder injetados em nossas vidas.

Para conhecer os títulos da matéria da revista Época, clique aqui.

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