A cidade assassina, a arte alimenta: A dificuldade de se manter vivo em São Paulo
Pisei na areia quente e senti o frescor que emanava do oceano. A praia, deserta para todos os lados, finalmente se mostrava para mim, em todas as suas cores e dimensões. Enquanto o mundo parava para assistir o início da Copa do Mundo no Brasil, eu parava para assistir o espetáculo natural, ao vivo e em cores. Um céu azul tão limpo que chegava a brilhar, enquanto o Sol cumpria seu caminho, ao som das ondas quebrando e se desmanchando na transição entre a água e a areia.
É sempre incrível a sensação de ver o mar: tomo consciência do meu tamanho insignificante, ao mesmo tempo em que percebo a minha existência como sendo única e extremamente especial. É um poder curativo, na verdade, e eu estava precisando de cura.
O desgaste extremo de se viver na metrópole paulista do século XXI me arrematou. Não bastasse a vida em condições extenuantes, numa cidade de proporções gigantescas não só pelo seu próprio tamanho, mas pelo tempo que gastamos com deslocamentos diários; somos ainda obrigados a aceitar e conviver com uma série de absurdos impostos por aqueles que deveriam nos proteger e nos governar. Aqui, somos treinados para a indiferença, para a hipocrisia, para o aprisionamento, para a desumanidade. Quanto mais você conseguir ignorar o ser humano que há em você e que há nos outros, melhor. Mas viver não é tão simples assim.
Alguns não se adaptam a essa grande roda que gira, a essa engrenagem que nunca para e só te suga sem te dar nenhum retorno de verdade. Para alguns, a vida é um pouquinho mais do que o salário garantido no fim do mês, às custas da sua própria dignidade. É necessário alimento, sabor, vida. Mais vida em nossos dias, não só mais dias em nossas vidas.
São Paulo é massacrante. Todos os dias eu vejo pessoas acostumadas a esse massacre, talvez por acreditarem que as coisas são como elas são, e que nos resta aceitar, resignados, talvez por não compreenderem que existe a opção de falar não, de rejeitar tudo que nos é empurrado goela abaixo. Ou talvez porque vivamos na maior parte do tempo no modo automático, sem refletir, sem questionar, sem viver de fato, apenas preenchendo os dias, cumprindo aquilo que esperam de nós.
Fato é que quando você desliga o modo máquina, aquele que funciona para trabalhar, estudar e cumprir as suas atividades, as suas “obrigações”; quando você procura o ser humano que habita seu corpo, a sua criança interior, você tem uma grande chance de se encontrar machucado, ferido, destruído.
De todas as coisas que você fez hoje, quantas você genuinamente aproveitou? Quantas te trouxeram prazer e satisfação em um nível mais profundo do que meramente o físico? Quantas alimentaram e aqueceram teu espírito?
Foi me fazendo essa pergunta que consegui sentir todo o massacre, toda a desumanidade de se viver em São Paulo. Cada vez menos eu vivia, cada vez menos eu me sentia vivo. E por isso, fugi.
Pude estar ali, sentado na beira da praia, ao lado da pessoa que faz eu me sentir completamente vivo. Ignorando solenemente tudo que acontecia no estúpido e pequeno reino da sociedade humana, para apenas sentir a minha própria natureza; assim como faz o mar que nunca cessa suas ondas, e o sol que nunca sai de seu caminho.
Ali, por um instante lembrei das palavras do Criolo, e decidi segui-las com afinco. “Procure viver, pois o Estado já o assassina vagarosamente todos os dias; e é importante você permanecer vivo”, ele disse. Hoje, é só isso que procuro.
São Paulo é massacrante, e vai nos matando pouco a pouco. Resistência é você permanecer vivo, humano, no meio de tudo isso, dessa guerra, dessa selva.
Talvez seja esse o meu encanto com a arte, que pulsa por todas as quebradas da cidade.
Talvez seja só vontade de saciar essa profunda fome espiritual, essa busca incessante pelo alimento da alma.
Você se lembrou da frase de Criolo e eu, a partir dela, me lembrei de Marighella: “O primeiro dever de um/a revolucionária/o é manter-se viva/o”.